18/10/2018 - 00h12

'Repúblicas de adultos' atraem quem quer economizar e fugir da solidão

O Estado de S. Paulo
 
Pessoas entre 30 e 50 anos de idade têm buscado conviver em comunidade dentro de casa, um conceito batizado de coliving que vem ganhando adeptos nas grandes cidades
 
Para fugir dos aluguéis caros e da vida solitária das metrópoles, pessoas entre 30 e 50 anos estão buscando dentro de casa a convivência em comunidade. São famílias, pessoas solteiras e separadas. Em meio à recessão econômica, o conceito de partilhamento vem atraindo várias gerações interessadas em dividir espaços para economizar e também fazer refeições conjuntas, conversar e ter companhia. Se por um lado pessoas na faixa de 30 a 40 anos optam por coliving, grupos da geração mais velha - dos 40 aos 50 anos - estão se organizando para vivência em cohousing.
 
"Quando morava sozinho, só tinha opção de estar sozinho e, se quisesse companhia, teria de levar visita para a minha casa. No coliving, tenho duas opções: ficar quieto no meu quarto ou em alguma parte da casa", diz o programador visual Marcel Castro, de 33 anos, sobre a principal vantagem de morar em coliving. O conceito moderno de vida em comunidade - com troca de experiências em espaços comuns como sala e cozinha - começou a ganhar mais adeptos nos últimos anos nas capitais brasileiras e não se restringe mais somente a repúblicas de estudantes.
 
Tradicionalmente, o coliving se caracteriza por casas grandes, preservando espaços privativos como suítes. Mas o mercado imobiliário está de olho nesse jeito de viver. Segundo o Secovi, o coliving está se consolidando e se popularizando. E há prédios que são lançados nesse conceito, com apartamentos pequenos, mas com investimento em áreas comuns, com cozinhas coletivas e até espaço para coworking.
 
Nessa linha, há até prédios com salas de ferramentas que dispõem, por exemplo, de serrote, escada e furadeira, dispensando a compra individual por cada morador. Já o cohousing, ainda em estágio inicial no Brasil, é um espaço pensado por grupos que se aproximam, convivem e planejam a compra e construção conjunta de casas com caráter partilhado - processo que normalmente leva de 3 a 5 anos. 
 
O coliving é com frequência chamado de "república de adultos". Quem busca esse tipo de convivência, precisa estar disposto a seguir regras e dividir espaços. A disciplina é um dos pilares da Amarelinha, casa onde Castro mora com outras seis pessoas na Lapa, zona oeste de São Paulo. Eles pagam R$ 6,4 mil de aluguel, além de R$ 420 de condomínio e IPTU. "Economizamos muito na parte do condomínio. Se cada um fosse pagar internet e faxineira sozinho, por exemplo, daria muito mais caro."
 
Todos têm funções definidas, que podem ser trocadas: cuidar do jardim, administrar as finanças, fazer compras de supermercado, guardar os itens do escorredor, chamar o encanador. O diálogo é constante e a convivência assume ares de família. "Tem tudo que rola numa família: da treta aos momentos de confraternização." No dia a dia, diz ele, os sete não se esbarram: além de horários de trabalho diferentes, a casa é muito grande. "Como não encontramos muito, acabamos tendo que combinar para encontrar todo mundo. Geralmente envolve comida". 
 
O artista plástico Victor de La Rocque, de 33 anos, mora em um apartamento de 120 m² no bairro Paraíso, na zona sul da capital, com o primo e uma amiga dele. "A gente trata como prima. Virou uma família", conta. Cada um tem o seu quarto, e há dois banheiros na casa. "Quando chegamos do trabalho, ficamos todos juntos. Conversamos, abrimos um vinho, fumamos um cigarro. No fim de semana, saímos juntos ou fazemos uma festinha em casa", explica. Os três criaram algumas regrinhas e se dividem entre a limpeza da cozinha, do banheiro, da sala e os cuidados com o cachorro. 
 
A proposta de divisão de espaços atrai também famílias, mas até certo ponto. A terapeuta corporal Bianca Frasson, de 38 anos, recém-separada e com dois filhos, gosta do compartilhamento de espaços, mas preza também pela privacidade que um studio dentro de uma coliving proporciona. É a Casa Tucuna, na Pompeia, zona oeste, oito pessoas moram em três casas. Uma delas é onde reside desde fevereiro a terapeuta com a filha Chiara, de 17 anos, e o filho Lorenzo, 7, que dorme no local metade da semana e se divide entre outros dias na casa do pai.  
 
No estúdio-casa, ela tem sofá, televisão, banheiro e cozinha. De espaços em comum com o restante dos moradores, há o deck e o quintal. Há ainda divisão entre eles sobre o dia da semana em que pode tirar o lixo e lavar roupa, por exemplo. "Meus filhos adoram, se sentem super à vontade. Meu filho entra nas outras casas, conversa com os vizinhos. Minha filha sobe para estudar no deck, pegando sol", conta Bianca, que antes da separação morava em um apartamento em Perdizes, também na zona oeste. 
 
Segundo ela, os amigos acham o máximo a proposta. Mas a família estranhou. "A família acha uma absurdo e não sabe como aguento. Dizem que a minha escolha foi péssima. Tem esse movimento de deixar janela aberta, ouvir passarinhos, ver o verde, aí passam os moradores e dizem bom dia, boa tarde. A família quando vem visitar estranha muito esse movimento."
 
Ela, que nunca havia morado em república ou coliving, tem adorado a possibilidade de companhia e clima familiar que o conceito oferece. "Tem essa proposta de comunidade, então você não fica sozinho. Tem com quem contar, com quem trocar", diz. 
 
Responsabilidade.  "É um monte de adulto que tem mais higiene, organização e dinheiro morando em um esquema de república. O coliving é uma república que não tem tanta zona. As torneiras têm que estar funcionando direitinho. Tem mais responsabilidade e zelo", conta o locutor Henrique Oda, de 35 anos, morador de um coliving no Alto da Lapa, zona oeste.
 
Para La Rocque, outra diferença entre os dois conceitos é o clima é de coletividade e união. "A gente vai pela afinidade, pela afetividade, naturalmente. Em república, eu sinto que não há essa troca", explica. "O coliving é mais de doação. É tanto que já teve caso de gente que veio morar aqui e não se adequar a isso, e a pessoa sai. Aqui em casa, apesar de termos essa troca na sala, temos nossos quartos. E a gente também tem essa liberdade de entrar um no quarto do outro pra conversar. Às vezes um está mal, tá triste. E quer dividir algo. Às dormimos um no quarto do outro." 
 
Afinidade e troca de experiências é o que tem movido esse novo público, na opinião de Alexandre Lafer Frankel, coordenador do grupo de Novos Empreendedores do Secovi-SP. Já há em São Paulo, por exemplo, prédios com o conceito de coliving. Ele aposta que apartametos com esta proposta vão substituir as tradicionais kitnets e as repúblicas. "As pessoas estão buscando pontos em comum que geram relacionamento e senso de pertencimento. É a forma de pensar da nova geração. Esse é o novo formato de morar e se relacionar", explica. 
 
Segundo Frankel, o mercado está entendendo agora a demanda e vem evoluindo para tentar entender o novo padrão de comportamento. "Já percebemos que é quase obrigatório e mandatário que se adotem práticas de modernização dos empreendimentos. O setor está se movimentando. Hoje é praticamente inadmissível que um prédio não venha com equipamentos de troca de convivência e experiência", afirma. "Nos prédios de coliving, as pessoas trocam tanto as experiências, que têm surgido oportunidades de negócios nos espaços de coworking." 
 
Na casa de Oda, além de coliving, funciona também um coworking dos próprios moradores. Ele divide o lar com o sócio e está aguardando a entrada de uma terceira moradora. Na casa, são duas suítes. Do lado de fora, há outra casa onde opera a produtora da dupla. Há ainda um estúdio e uma sala simples: "Como a casa é muito grande e as contas são altas, para a gente vale a pena ter uma galera que trabalha junto e dá uma ajuda de custo para usar o espaço." 
 
Solidão. Diretor do FGV Social, Marcelo Neri afirma que este é um movimento compatível com a economia partilhada, que tem como um dos principais ícones serviços como Airbnb. "Você torna os recursos mais partilhados."
 
Neri atribui a mudança de comportamento ao avanço tecnológico, à queda no número de pessoas por domicílio e ainda à solidão. "É natural que surjam essas iniciativas para as pessoas não ficarem tão sozinhas. No fundo, é uma estratégia mista. Você vai compartilhar algumas coisas, mas também vai ter a possibilidade de ter privacidade".
 
Diante da queda no número de pessoas por domicílio das últimas duas quedas, ele argumenta que a estratégia de partilhamento pode estar surgindo como consequência da percepção negativa em relação às desvantagens de morar sozinho: o custo é alto e a vida é mais solitária.
 
"As pessoas estão tendo menos filhos e vivendo mais", afirma Neri. Na década de 1970, uma mulher tinha 5.8 filhos. Hoje ela tem 1.8 filho. "À medida que as mulheres ficam mais velhas, elas ficam mais sozinhas. Casam-se com homens em média 10 anos mais velhos que, quando morrem, deixam essa solidão", explica. Com o avanço da tecnologia e da medicina, a expectativa de vida aumentou, mas a solidão na terceira idade também. 
 
Cohousing. Para combater a solidão, a relações públicas Ana Beatriz de Oliveira, de 48 anos, idealiza uma cohousing com outras 9 mulheres em Belo Horizonte. Formado em março, o grupo se caracteriza por pessoas acima de 40 anos. Metade delas é separada e mora sozinha.
 
Na opinião de Ana Beatriz, a moradia como funciona hoje, sem convivência com a vizinhança, é um modelo falido. "Os vizinhos hoje não se preocupam entre si. Às vezes a gente divide parede com parede, escuta latido de cachorro, choro de criança, e não sabe quem está do outro lado. As pessoas não se conhecem e não se procuram", diz ela.
 
A proposta de cohousing ainda é nova no Brasil. Grupos se formam em cidades do interior de São Paulo, como Itu e Campinas, além de outras capitais brasileiras. No fim deste mês, um curso do Secovi-SP para planejamento e implantação de cohousing quer preparar os participantes para a formação de um grupo e empresários para o investimento no conceito.
 
De olho no aumento da expectativa de vida e a futura demanda por equipamentos acessíveis, o arquiteto Giovanni Bracco, de 69 anos, quer começar a empreender para atender essa necessidade ainda embrionária no Brasil por cohousing.
 
Dentro dos condomínios pensados por Bracco, o cohousing é um prédio residencial adaptado para o idoso "que entra em boas condiçõe e de repente sai cadeirante, com Alzheimer, enfim, uma dependência muito grande". "O familiar não vai precisar se preocupar vai ter uma estrutura completa com cuidador 24 horas, pronto atendimento... É uma estrutura mais útil, que não está datada." 
 
Ele reconhece, no entanto, um aspecto negativo desse modelo: o custo. A estimativa é que o condomínio seja por volta de R$ 10 mil. O valor se deve aos serviços. "O cohousing lá fora está baseado em uma filosofia hippie que não é a filosofia dos latinos. O brasileiro sonha com uma casa própria. Então, ele vai querer todo o cuidado, mas no seu espaço", prevê.
 
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