25/04/2017 - 00h07

Era uma casa muito engraçada

Folha de S. Paulo
 
Com sofá, tapete e cama, morador de rua monta 'casa' sob o Minhocão
 
Em uma das colunas grafitadas do Minhocão, dois quadros compõem, ao lado de uma lousa onde se lê "Deus é Fiel", uma espécie de sala de estar. O morador de rua Wlademir Delvechio, 33, gosta "das coisas arrumadas". Tem mesinha com planta, tapete no chão. "Isso fortalece, é bom ter tudo limpo quando chego pra dormir", diz ele, mesmo sem se iludir.
 
"Sei bem que isso não é minha casa, casa, não é nada fácil acordar na rua. Você fica com medo até de você". Há três meses, Delvechio alojou-se sob o Elevado Presidente João Goulart, perto do metrô Marechal Deodoro.
 
 
Um sofá fica de frente a dois armários, onde estão organizados os objetos pessoais. Roupas, pasta de dente, espelho, e, entre outras coisas, um boneco rosa da Peppa Pig, sucesso entre as crianças. Uma cama com lençol colorido fecha o ambiente.
 
A maioria das coisas foi recolhida pelas ruas, no lixo. Os vizinhos também ajudam. "O cara da padaria me deu barbeador, até gel para a barba. Eu sempre me cuido", diz, com gel nos cabelos. No colchão na calçada, gosta de ler gibis. "Você olha pra sociedade e só vê maldade, aí vou pro gibi e a gente volta a ser criança."
 
Essa morada atual simboliza uma luta pessoal de Delvechio contra o crack. Nascido em Osasco, o vício começou quando ainda era jovem, na cidade de Ilha Comprida (litoral sul paulista), onde cresceu com a família. Já trabalhou como carpinteiro, pedreiro e teve até um lava rápido, diz ele. Conta que recebeu uma pedra de crack de um traficante e aprendeu a fumar ao ver uma reportagem na TV sobre a droga.
 
Foi internado mais de uma vez e também chegou a ser preso por furto, aos 19. Após chegar na capital para tentar um trabalho de pintor, há três anos, acabou na rua atrás da pedra. Vivia pela cracolândia até "fugir" para debaixo do Minhocão.
 
SOLIDÃO
 
Até as 17h de sexta-feira (21), estava longe do crack havia duas ou três semanas. Não sabe bem ao certo o tempo de abstinência. "A droga é maldade", diz. "Mas eu tenho minhas recaídas, estou sozinho e a solidão não é fácil. É muito louca a caminhada."
 
Já procurou o programa Braços Abertos, criado pela gestão Fernando Haddad (PT), mas diz não ter conseguido vaga. Afirma duvidar da promessa da gestão atual, do prefeito João Doria (PSDB), de tirar as pessoas da rua. "O que eu mais quero é sair da rua. Quem não quer ter um lugar pra acordar, escovar os dentes e ir pro trabalho?", indaga.
 
Tatuagens no braço e nas costas lembram os dois filhos, de 8 e 16 anos. Nunca mais os viu. "A gente cai na droga, como vai ter sua família?", diz, emocionado. "Só queria que eles soubessem que, apesar de tudo, eu sobrevivi". 
 
 
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